Nascido Novamente

Perdido no mar

Para o brasileiro Carlos Henrique, o prazer de deslizar pela água superava qualquer risco, até que um dia o surf transformou-se em pesadelo.



Observando do passeio as ondas altas da praia da Cal, em Torres, a 200 km de Porto Alegre, Carlos Henrique Naschold imaginou que daria trabalho vencer a rebentação. Uns poucos surfistas estavam na areia e ninguém entrara na água. Mas o estudante de Educação Física de 21 anos estava decidido a surfar, embora tivesse dito à namorada, Francine, que ia ficar em casa naquela tarde fria de 18 de Agosto de 2003.
Assim, tirou a prancha do carro, vestiu a roupa de neoprene sobre a camisola de lycra e caminhou em direcção ao mar. Eram cerca de 16 horas e a temperatura não ia além dos 15°C. O ceu estava encoberto no momento em que ele entrou no mar. Quando a água lhe chegou a altura da cintura, deitou-se sobre a prancha e remou com energia em direcção à ondas para chegar ao outside, como os surfistas chamam a faixa de mar para lá a rebentação. 
Carlos Henrique experimentava sempre uma felicidade intensa ao chegar ao outside, quando perdia o contacto com os cheiros e sons da praia e vivenciava as regras do mar. Sentado na prancha de frente para a ilha dos Lobos, a cerca de 1800 m da praia, desfrutou da sensação até sentir-se animado pelo tamanho de uma determinada onda. Então, deitou-se de bruços, impulsionou a prancha com os braços e a onda levou-o. Num movimento rápido, pôs-se de pé e passou a controlar a trajectória com o equilíbrio e a força das pernas. 
Ficou no mar quase duas horas. Quando o céu começou a escurecer, Carlos Henrique sentiu que era hora de voltar para casa e começou a impulsionar a prancha com os braços em diagonal para apanhar a última onda e chegar à areia. Foi só então que percebeu: a corrente impedia-o de voltar e arrastava-o para o largo.
Às 17.30, Francine Morais Rodrigues, de 22 anos, deixou o trabalho e, como fazia todos os dias, foi encontrar-se com o namorado. Carlos dissera que não ia para o mar, por isso ela seguiu directamente para casa dele. Não o encontrando, sorriu e imaginou que ele não resistira à vontade de surfar. Na Prainha, um acesso a praia da Cal Francine avistou logo oGolf azul de Carlos Henrique. Do passeio, não via ninguém dentro de água. Descéu e caminhou até a beira-mar, mas também não havia nenhum surfista lá em baixo. Deixou um bilhete no pára-brisas e foi para casa tomar banho. 
Meia hora depois, Francine voltou à Prainha e ficou surpreendida por encontrar o carro no mesmo sitio, com o bilhete ainda preso no pára-brisas. Olhou para o mar, mais agitado do que o normal, e começou a ficar preocupada. Voltou a casa do namorado, mas as luzes estavam apagadas. Então, encontrou um surfista conhecido que morava em frente a Carlos Henrique e perguntou pelo namorado. «Bem, eu vi-o entrar na água ...», disse o rapaz. «A corrente está muito forte hoje.» Ambos olharam o mar escuro por instantes. Então, Francine decidiu que era melhor pedir socorro. 
Ilha vista de dentro do mar Ilha dos Lobos, pouco mais que um aglomerado de rochas, é o mais pequeno local sujeito às regras de conservação ambiental do Brasil. A pesca ali é proibida, e o surf junto à ilha é controlado pelo Ibama, o instituto brasileiro responsável pelo ambiente. Raramente os surfistas se aproximam do local.

Com o céu a escurecer e a corrente forte, Carlos Henrique desistiu de tentar voltar e decidiu procurar abrigo na ilha. Sentiu alívio quando chegou às primeiras rochas: achou que o pior havia passado. Mas a maré subira e apenas duas pedras não estavam submersas. A mais alta fora ocupada por um leão-marinho. Ao raspar com o fundo da prancha nas rochas, Carlos Henrique assustou o animal, que pulou para a água. Então,o surfista acomodou-se na rocha, sentindo-se confiante. Em pouco tempo, porém, havia cerca de 20 focas e leões-marinhos nadando à sua volta. Ele deixou-se ficar imóvel por momentos, o coração acelerado. Alguns dos animais mediam mais de 3 m de comprimento. 
Agora, na escuridão quase total, via apenas o reflexo dos grandes caninos brancos que podiam triturar de 15 a 25 kg de peixe por dia. Também sentia o cheiro característico de óleo - odor resultante das fezes e do hálito. Quando este se intensificava, era sinal de que um dos animais tentava aproximar-se. Carlos Henrique decidiu contra-atacar do único modo que podia: gritando e fazendo barulhos com a prancha. 
Em Porto Alegre, a noite era de festa: o avô de Carlos Henrique completava 82 anos. Às 20.30, o telemóvel do engenheiro ambiental Carlos Ernesto, pai do surfista, tocou. A ligacão era de Torres, mas o número não era o do filho.

O pai de Francine avisava que tinha acontecido um «problema» com Carlos Henrique. Francine também ligou para a mae do namorado, a professora Angela, que deixou os alunos a meio de uma aula e foi para casa temendo o pior. 
De lá, a família seguiu para Torres. Em silêncio, no carro, Angela tentava conter as lágrimas e segurava a mão do filho mais novo, Guilherme, de 17 anos. 
Sentado desconfortavelmente no topo da rocha mais alta, Carlos Henrique lutava para manter os animais à distância. «Ao menos estou fora da água», pensou ele logo após emitir uma série de gritos. Àquela hora, o frio aumentava de maneira significativa. O vento na pele queimava como gelo. Por instinto, ele sabia que para sobreviver teria de tirar a roupa molhada e tentar secá-la. Isso aumentaria o desconforto, mas ele tinha que manter a água longe da pele. 
Quanto mais molhado ou mais exposto ao vento o corpo de Carlos Henrique estivesse, maior seria o risco de hipotermia. E mais: a temperatura corporal pode baixar vinte e quatro vezes mais depressa na água fria do que no ar frio. 
No primeiro estágio da hipotermia, começa a sentir-se frio, a tremer e experimenta-se dificuldade em pronunciar as palavras. Depois, há uma ligeira perda de controle muscular, sonolência, letargia e exaustão. 
No estágio mais severo, quando a temperatura do corpo cai para menos de 30°C, as pupilas dilatam, os tremores cessam, a rigidez muscular aumenta, enquanto os ritmos cardíaco e respiratório diminuem. Gradualmente, a pessoa perde a consciência, e quando o corpo alcança a temperatura de 20°C aproximadamente, o coração para de bater. 
Ainda alerta em relação aos animais, Carlos Henrique tirou a roupa de neoprene e virou-a do avesso para que secasse. Também amarrou os pés no astrodeck (parte de borracha da prancha que funciona como antiderrapante) e cobriu-os com a camisola de lycra para aquecê-los. 
As focas e leões-marinhos começavam a dar trabalho: já não pareciam incomodar-se com a presença de Carlos Henrique e aproximavam-se dele, mostrando os dentes. O rapaz forçava-se a continuar a gritar para mantê-los afastados, mas os efeitos da hipotermia, além de prejudicarem o raciocínio do surfista, faziam-no perder a consciência de tempos a tempos. Tentou distrair-se pensando na namorada e na família. Mas o frio perturbava o seu corpo e a sua mente. Ali, no meio do nada, no mar escuro, imaginou que via Francine chegando com o seu Golf para o vir buscar. 
Às 23 horas, quando a família chegou a Torres, nada se podia fazer. Há muitos rochedos no mar da região, e os bombeiros chamados por Francine, precisariam de uma lancha com radar e sonar nessa noite de neblina. Mas não dispunham do equipamento. A beira da praia estava completamente escura. Não havia sequer luar para iluminar a espuma das ondas. Os bombeiros apontaram alguns holofotes para o mar, na esperança de avistar Carlos Henrique. Mas não havia sinal do rapaz. 
Guido Pedroso de Melo, major comandante do Corpo de Bombeiros de Torres, mencionava resgates bem-sucedidos nos seus 20 anos de experiência, na tentativa de dar esperanças a família de Carlos Henrique. «Se ele optar por nadar de volta, a hipotermia pode matá-lo. Mas se ele surfa desde criança, pode ser que tenha conseguido chegar à Ilha dos Lobos», disse Guido para tranquilizar Angela. 
Num hotel junto à praia, um grupo de surfistas praticantes de tow-in - modalidade do desporto em que se chega às ondas desejadas com um jet ski - foi avisado por um surfista de Torres do desaparecimento de Carlos Henrique. Os surfistas estavam em Torres para participar no Programa Xtreme TV, da ESPN Brasil, apresentado por Luís Roberto Rodrigues de Moraes, o Formiga, de 40 anos, que pretendia documentar aventuras do grupo naquele mar agitado, com ondas de mais de 6 m de altura. 
Mesmo cansados depois de um dia inteiro no mar, Formiga e outros sete surfistas mobilizaram-se para tentar resgatar Carlos Henrique. Quatro deles, entre os quais Romeu Bruno Filho, de 39 anos, que foi salva-vidas no Havai durante 12 anos, entraram na água em dois jet skis. Os outros procuraram na orla marítima. 
Os veículos viraram-se várias vezes até chegarem às proximidades da Ilha dos Lobos. A neblina e as ondas altas dificultavam a visibilidade e a aproximação. Gritaram pelo nome de Carlos sem obter resposta. Desanimados, regressaram à praia. 
Vendo os holofotes dos bombeiros à distância, Carlos começou a gritar e a fazer barulho com a prancha, espantando os animais e o frio e tentando reanimar-se em cima das pedras. Dizia constantemente que faltava pouco para amanhecer. Ouviu os jet skis e gritou muito, mas o vento abafava-lhe a voz, e o barulho dos motores foi ficando cada vez mais distante. E novamente viu-se sozinho na noite mais longa da sua vida. 
Os pais de Carlos não estavam dispostos a esperar atá a manhã seguinte. De carro, vasculharam a praia pela orla até ao outro lado do rio Mampituba, já no estado de Santa Catarina. Os termómetros marcavam menos de 10°C, e o vento e a proximidade do mar davam uma sensação de frio ainda maior. 
Carlos Ernesto conduzia e a cada quilómetro parava o carro para iluminar o mar e caminhar à beira-d'água. O frio era tanto que de vez em quando via-se obrigado a voltar ao automóvel e ligar o ar quente por uns minutos para se aquecer. A todo o momento pensava no filho dentro daquela água gelada. 
A agonia prolongou-se até às 2.30, quando foram todos para a casa de Francine. Ninguém conseguiu dormir. O pai de Carlos ia até a praia e voltava. Numa das vezes, de longe, pensou ver o filho junto ao Golf azul com o porta-bagagem aberto. Mas era só o telefone público. 
De olhos no relógio, Francine aguardava que o dia clareasse. Pouco depois das 5, saíram todos em direcção ao Corpo de Bombeiros. As condições da manhã que chegava não eram adequadas para que um helicóptero viesse de Porto Alegre. Desesperados, Carlos Ernesto e Francine voltaram ao hotel dos surfistas que na noite anterior tinham entrado no mar para procurar Carlos Henrique. «Preciso da vossa ajuda novamente», disse Carlos Ernesto ao primeiro rapaz que abriu a porta do quarto. 
Naquele mesmo istante, num outro quarto, Formiga era acordado por um dos companheiros de busca da noite anterior. Eram cerca das 6.30 e, apesar de muito sonolento, Formiga, que também é pai, levantou-se e colocou o seu jet ski no mar, levando um amigo consigo. Ao ver o pai de Carlos Henrique, não conseguiu dizer-lhe nada. «Só pensava na minha filha», recorda ele. 
Estava quase a amanhecer. Carlos Henrique sentiu as forças renovarem-se quando chegou o alvorecer. Olhou à sua volta e viu logo os animais. Sobrevivera à noite. Começou a esmurrar o ar com a mão, comemorando, mas ainda tremia de frio e estava extremamente fraco depois de quase 20 horas sem comer nem beber. Decidiu então esperar pelo sol para tentar aquecer-se um pouco. 
Assim que pode ver a luz do dia, subiu para a prancha e começou a remar vagarosamente, exausto e temendo a corrente marinha que ainda teria de enfrentar antes de chegar à praia. 
As ondas continuavam fortes, mas as luzes da manhã trouxeram alguma visibilidade. Num instante, Formiga deixou a costa para trás. Adiante, podia ver a Ilha dos Lobos. O jet skicobriu a distância em cerca de 10 minutos. Formiga diminuiu a velocidade e aprumou-se, tentando encontrar algum sinal de Carlos Henrique na água. Por segundos, pensou estar a viver apenas a emoção de um dos seus documentários. Mas, imediatamente, lembrou-se de que aquilo era realidade e que a vida de um rapaz estava em risco. Não pode evitar pensar no pior e visualizou o surfista morto. Então, viu uma prancha subindo e descendo na água. Sem duvida era a de Carlos Henrique. «Ele esta vivo!», gritou o Formiga. 
Carlos Henrique respirou de alivio quando o jet ski se aproximou. Os dois surfistas gritavam.
«Meu Deus! Não posso acreditar ... É óptimo ver que está bem», disse Formiga.
«Obrigado! Obrigado! A maré está forte ... Tive medo de não conseguir voltar sozinho», confessou Carlos Henrique. 
Na praia, a expectativa era grande. Carlos Ernesto e o seu filho Guilherme estavam no passeio, a fim de ter uma visão melhor dos surfistas dentro de água. Francine chorava alto e preferia não olhar. Depois, Angela entrou na água, «com roupa e tudo», para abraçar o filho, cuja pele estava ainda roxa de frio, os olhos arregalados apesar do sorriso de alívio. Sem dizer uma palavra, o rapaz lançou-se nos braços da mãe. 
O Formiga e o seu grupo pulavam na areia e gritavam para o Sol, que começava a surgir no horizonte, trazendo Carlos Henrique de volta para a família. 
Depois daquelas 13 horas passadas na ilha junto aos lobos e as focas, o local tornou-se para Carlos Henrique sinónimo de reverência e cautela. «Vou continuar a fazer surf, mas com respeito dobrado pelo mar e pela minha vida», diz ele. 
E por Francine, que a partir de agora promete controlar atentamente o horário das entradas e saídas do namorado no mar. «Quero ter certeza de que não vamos ter mais surpresas», diz ela.

This entry was posted on sexta-feira, 13 de julho de 2012 and is filed under . You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0. You can leave a response.

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